sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Procurador de Justiça Eduardo Tavares ministra palestra no IHGAL




        O Procurador de Justiça e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Eduardo Tavares, ministrou palestra na sede  do IHGAL sobre o rio São Francisco. Com o tema "Rio São Francisco, sua importância, suas dificuldades", o palestrante falou sobre  vários aspectos relacionados ao chamado “Rio da Integração Nacional”: seu deflúvio, a seca que abate o semiárido, e a transposição de suas águas para o abastecimento de parte do Sertão nordestino.  Para ele, a transposição é um grande equívoco do governo brasileiro, pois o Nordeste é a região do mundo mais bem abastecida de açudes, com cerca de 70 mil barragens, que armazenam cerca de 37 bilhões de metros cúbicos de água. “É apenas uma questão de distribuição”, afirmou Tavares, acrescentando que o investimento para realizar a gigantesca obra é uma exorbitância e daria para irrigar as duas margens do baixo e do médio São Francisco. "O grande problema é o fato de o “Velho Chico” ser um rio hidrologicamente pobre, com vazão média de apenas 2.800m³/s (o rio Tocantins, com a mesma área de bacia, tem um deflúvio de 11.800n³/s), além de seu leito se encontrar, em grande parte, na região semiárida brasileira.  Por isso, suas águas sofrem as consequências da evapotranspiração", acrescentou o pesquisador.
            “Hoje, ao invés de o rio penetrar no oceano com toda pujança, como ocorria outrora, a língua salgada do mar é quem penetra rio acima, por dezenas e dezenas de quilômetros, salinizando suas águas e carreando espécies marítimas de peixes e crustáceos. Caso não se tomem providências urgentes para o reflorestamento das margens e a revitalização do rio, conhecido também como Opará na linguagem indígena, o mais importante rio essencialmente brasileiro corre o risco de não mais chegar à foz, como ocorreu com o rio Colorado, nos estados Unidos”, alertou o expositor.
          Estiveram presentes à palestra inúmeros membros do Instituto; o Secretário do Gabinete Civil do Estado e membro do IHGAL, Dr. Alvaro Antônio Melo Machado; o Cel. Marcus Aurélio Pinheiro, chefe da AMPGJ; a presidente da Associação do Ministéro Público de Alagoas, Dra. Adilza Freitas, além de membros do Conselho Estadual de Segurança, promotores de justiça, políticos, moradores de cidades ribeirinhas, alunos do CESMAC, dentre outras pessoas. 
    O presidente do IHGAL afirmou, na oportunidade, que no ano vindouro o rio São Francisco será objeto de muita atenção por parte do Instituto, tanto no aspecto geográfico como histórico.


O Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. (foto Claudemir Mota)
Eduardo Tavares em seu pronunciamento. (foto: Claudemir Mota)
Secretário do Gabinete Civil do Governo do Estado e membro do IHGAL, Álvaro Machado. (foto: Claudemir Mota)


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Subindo o Rio

  Parte III

 Subindo o Rio
                     Vinha planejando uma viagem de pesquisa ao baixo São Francisco há alguns meses. Faltava-me tempo na tumultuada agenda de compromissos no Ministério Público e na lide acadêmica. 
               A equipe, todavia, já estava definida: coronel Marcus Aurélio Pinheiro e sargento Alex Oliveira de Araújo, ambos da Polícia Militar de Alagoas, grandes amigos; fotógrafo (dos mais experientes) Claudemir Mota; comerciante e companheiro de navegação José Rodrigues Filho, o "Rodrigo"; e José Luiz, piloto e velejador "de longo curso". Na verdade, o faz-tudo do barco. Sem ele, certamente não teríamos realizado o almejado projeto.
           Iniciaríamos a primeira etapa da expedição no dia 15 de novembro do corrente ano, e a viagem deveria durar quatro dias. A ideia era partir de Traipu a bordo da “Catita do Rancho”, com destino a Piranhas, em Alagoas, e Canindé do São Francisco, em Sergipe, com o objetivo de observar os afluentes do Velho Chico, localizados em suas duas margens; fotografar os trechos secos, as ilhas, a vegetação, tipo caatinga; os acidentes geográficos mais expressivos, as cidades de Belo Monte, Pão de Açúcar, Piranhas, além dos pequenos povoados; registrar os principais monumentos, prosear com pessoas nativas e, em seguida, descer o rio, repetindo o mesmo procedimento no lado de Sergipe: visitando Canindé do São Francisco, Angicos (local onde Lampião foi morto com parte de seu bando), Gararu, o "buraco" da Maria Pereira e assim por diante, até a foz, passando por Propriá e Neópolis; e, ao chegarmos à desembocadura, deveríamos retornar, subindo o rio, passando por Piaçabuçu, Penedo, Porto Real do Colégio e São Braz, até chegar ao marco zero da expedição, em Traipu. 
             Projeto traçado, tivemos, entretanto, de alterá-lo, em razão do assoreamento do rio e do seu baixo nível, o que nos obrigaria a alternar de margem constantemente. Deveríamos agora mudar o roteiro, de modo que, tanto subindo como descendo, visitaríamos a localidade mais próxima: questão de praticidade. Providenciado o combustível (trezentos litros de gasolina só para a primeira parte da viagem), peixe, café, pão, muita água e refrigerante, enfim, todos os mantimentos necessários a uma aventura dessa natureza, sentimo-nos prontos para a façanha. A lancha é cabinada, mas levaríamos barracas e demais utensílios para acampamento, como churrasqueira, panelas e um computador a bordo para as anotações. 
            Eis que, então, chegou o esperado momento. Antecipamos a viagem para o dia 14 de novembro, quinta-feira. Dirigimo-nos a Traipu na véspera, durante a noite. Lavamos a lancha, e a  Mazé, secretária ad hoc, já havia preparado uma boa refeição, como de costume. Tiramos a “Catita do Rancho” do “Rancho São Francisco” por volta das 9 horas. Meia hora depois, já zarpávamos rumo ao destino colimado. 
        O “porto da areia” estava repleto de curiosos. O Claudemir, conhecido como “Dido”, era uma animação só. Ria, dançava, fotografava as meninas a se banharem nas águas cercadas de enormes pedras que adornam o porto de Traipu. Iniciava-se, naquela oportunidade, uma importante etapa da minha vida, que significava conhecer todo o baixo São Francisco. No futuro, pretendo chegar até a nascente do rio, nas Gerais, fazendo o percurso de carro e de lancha. Mas essa é outra história. 

Equipe jantando no dia anterior à viagem. (Foto: Claudemir Mota)

            A “Catita do Rancho” é uma lancha “milenium” de 24 pés, com motor Mércury de 200 cavalos, muito veloz e também muito voraz no consumo de combustível. Por isso, decidimos seguir viagem em velocidade moderada, sem pressa alguma, mesmo porque o importante era o trabalho que seria desenvolvido a partir daquele instante. 
Preparativos para levar a lancha até o rio São Francisco (Foto: Claudemir Mota)


         O nível do rio mostrava preocupante declínio, com muitas coroas de areia por todos os lados. Era preciso conhecer o canal de navegação. Já saindo de Traipu, observamos que a estação de medição da profundidade do São Francisco registrava um deflúvio bem inferior a 2.000m³/s, quando a média na região é de 2.800m³/s. Passamos pela foz do rio Traipu, conhecido como “Ribeira”, rio temporário, que desagua rente à cidade e verificamos que o "Velho Chico" avançava em seu leito seco cerca de 100 metros. Passamos por muitas fazendas, dentre as quais a Mata Verde e, logo depois, avistamos, a bombordo, o povoado de Lagoa Primeira, encravado no território do município de Gararu. Em seguida, e a boreste, divisamos o povoado de Patos, pertencente à cidade de Traipu. Seguimos em frente. Passamos pela fazenda Boa Esperança, na margem sergipana, onde foi instalado um centro de recuperação de drogados; na sequência, nossas vistas se voltaram aos povoados de Genipatuba, ainda em Gararu; e Cazuqui, no extremo do município de Traipu. 
 
Era preciso conhecer o canal de navegação: traçando a rota. (Foto: Claudemir Mota)



A estação de medição do nível do  São Francisco em Traipu dá uma ideia de sua situação atual. (Foto: Claudemir Mota)

            A viagem já se prolongava por mais de hora e meia. Exatamente às 12 horas e 20 minutos, agora navegando pelo lado de Alagoas, pois, como já disse, são as condições em que se acham os canais que ditam as regras da navegação, passamos em frente à fazenda Jacobina, sítio antigo, com construções centenárias, integrante, no passado, do patrimônio dos meus familiares. Hoje, a fazenda é um assentamento rural. 
               A cor azul da água e o vento que soprava suavemente nos davam uma grande sensação de prazer e de liberdade. Apesar de maltratado, existem cenários no “Velho Chico” que mais parecem o mar. No trajeto, muitos criatórios de “tilápias” e “tambaquis”, alternativa encontrada pelos pescadores à escassez de peixes nesse pedaço do rio. 

Em alguns trechos o rio  mais parece o mar. (Foto:Claudemir Mota)

            Rumamos com destino à cidade de Belo Monte, distante de Traipu cerca de 45 quilômetros por água. A paisagem é belíssima: paredões de pedra altíssimos, cobertos de caatinga e algumas espécies de cactos, tipo mandacaru, xique-xique e coroa-de-frade.
 
Paredões de pedra ao longo do rio. (Foto: Claudemir Mota)


             O baixo São Francisco é bordado de colinas e serras em suas margens. Aqui e ali, em áreas esparsas, a vegetação nativa está preservada: não em razão da consciência dos seus proprietários, obviamente, mas, em virtude da dificuldade de cultivo do solo, normalmente alto e íngreme. A vegetação se achava ainda verde, devido às últimas chuvas. Àquela altura, a beleza do “Velho Chico”, com suas águas azul-turquesa, emolduradas pelo verde das margens floridas, era motivo de deslumbramento para os ousados navegantes. 
           Por volta das 13 horas, já estávamos entre os povoados de Ilha do Ouro, no município de Porto da Folha, em Sergipe, e Barra do Ipanema, no município de Belo Monte, em Alagoas. Neste povoado, deparamo-nos com o imponente morro do Bom Sucesso, situado nas proximidades da foz do rio Ipanema, um dos afluentes intermitentes do São Francisco, originário de Pernambuco. O morro é quase uma ilha, com uma igreja em seu topo. Belíssima vista a estibordo! (Aliás, é uma característica dos povoamentos são-franciscanos a edificação de grandes templos católicos, influência da colonização lusitana). 
           Depois de uma hora de contemplação, uma sensação generalizada de fome começou a incomodar todo o grupo; mas o Rodrigo, sempre solícito, serviu-nos ovo de codorna, pitu torrado e amendoim. Com a provisão que já transportávamos na lancha (pão, água e refrigerante), saciamo-nos a bordo. 

 
Morro do Bom Sucesso com a Igrejinha em seu topo, localizado rente à  foz do rio Ipanema. (Foto: Claudemir Mota)




Hora do almoço. (Foto: Claudemir Mota)

          Às 13 horas e 30 minutos, sol a pino, chegamos à cidade de Belo Monte, nossa primeira parada. Ancoramos a embarcação, aproveitamos para tomar banho no Velho Chico e entramos na pequena cidade. Ali, visitamos a belíssima igreja de Nossa Senhora da Conceição, à qual se chega após ascender uma enorme escadaria. Interessante o fato de que quase não avistamos pessoas naquela cidade. O lugar estava praticamente deserto. 
 
Pequena cidade de Belo Monte, Alagoas. (Foto: Claudemir Mota)

             Embarcamos na “Catita do Rancho” e navegamos em direção à cidade de Pão de Açúcar, distante cerca de 29 quilômetros de Belo Monte, por água. Lembro que, ainda em Traipu, havíamos combinado, por telefone, com a incrível pessoa do “Piaba”, jovem barqueiro, os detalhes da viagem até o povoado de Entremontes, em Piranhas, a partir de Pão de Açúcar. Ele seria o nosso guia. Isso porque, nesse trecho do rio, há uma imensa quantidade de pedras. 

 
A imagem do Cristo Redentor de Pão de Açúcar ao longe. (Foto: Claudemir Mota)

          Próximo das 15 horas, avistamos a imagem do Cristo Redentor de Pão de Açúcar e, dez minutos depois, chegamos ao porto da balsa, local onde encontraríamos o “Piaba”, que, atento, já fazia sinal, mostrando o lugar onde devíamos fundear a lancha. Conversamos com o guia, acertamos a rota da viagem, e ficou decidido que ele seguiria à frente, com sua canoa de pescaria motorizada, facilitando a nossa navegação. Avaliamos a situação do barco e observamos que, por medida de segurança, deveríamos abastecer. “Piaba” providenciou o combustível junto com o Zé Luiz. Aproveitamos para comer, à guisa de almoço, sanduíche de camarão com ovos de codorna. Decidimos que só visitaríamos a cidade de Pão de Açúcar no retorno, descendo o rio, em face do adiantado da hora. 

O "Piaba" à frente, ao sairmos de Pão de Açúcar,  com destino a  Entremontes. (Foto: Claudemir Mota)

          Às 15 horas e 40 minutos, já estávamos acompanhando o guia, que reclamava, através de gestos de impaciência, porque navegávamos em velocidade menor do que a dele. O “Piaba” estava gozando da cara de todos nós! Aceleramos o possante motor, imprimimos uma velocidade de 30 nós, ou trinta milhas náuticas, e deixamos o gaiato muito, muito para trás. Adiante tivemos de parar e esperar por ele por mais de vinte minutos. Evidentemente, só aceleramos tanto porque o trecho permitia e, mesmo assim, apenas para pregar uma peça no “Piaba”. Uma boa brincadeira. 
         O nosso guia, encabulado, nos alertou, então, que, daquele trecho em diante, iríamos nos deparar com muita pedra, pois, além das características do leito do rio na região, o seu nível estava muito baixo. De fato. Nunca imaginei que o rio que eu conhecia, de Traipu abaixo, fosse tão repleto de pedras e de rochas enormes como aquelas, de Pão de Açúcar acima. Tivemos de navegar em zigue-zague, bem devagar. Mesmo assim, fomos surpreendidos por um forte barulho abaixo do barco, o que nos assustou. Pensávamos que o casco havia colidido com alguma pedra submersa. Fomos para a margem alagoana e verificamos toda a estrutura do barco: não houve nenhuma avaria. Mas, ao levantarmos o motor, verificamos que uma das pás da hélice trincou. Deduzimos, do acontecimento, que, mesmo com todo o cuidado do guia, terminamos, de alguma forma, batendo a hélice do motor em uma pedra. Nada, entretanto, tão grave a ponto de atrapalhar a viagem. 

 
O canoeiro e guia "Piaba". (Foto: Claudemir Mota)

            A paisagem mudou completamente; pedras e mais pedras, morros, colinas e serras de beleza indescritível. Chegamos a Entremontes, distrito de Piranhas, conhecido como a Capital nacional do bordado. Avistamos mais uma belíssima igreja. Atracamos no píer às 17 horas e 30 minutos, onde já nos esperava outra pessoa interessantíssima: o Damião Gonçalves, amigo do “Piaba”, que deveria nos levar até Piranhas. 
         O “Piaba” justificou a necessidade de irmos com o Damião porque o trecho se tornava ainda mais perigoso e seu amigo era bastante experiente. Tal como ocorreu em Pão de Açúcar, resolvemos que a nossa visita ao distrito de Entremontes ocorreria no percurso de volta. O nosso segundo guia, cidadão já maduro, prontamente adentrou em nossa “Catita” e, com o dia já escurecendo, seguiu conosco a montante, com destino a Piranhas. Entrementes, “Piaba” e "Zé de Ourinho", amigo dos dois guias, nos acompanhavam na sua “canoa voadora”. Damião passou a nos falar sobre Entremontes, outrora chamado Armazém, narrando orgulhosamente que, quando da visita de D. Pedro II à cachoeira de Paulo Afonso, o imperador e a princesa Isabel dormiram no povoado, oportunidade em que o próprio monarca batizou-o com o nome de Entremontes. “Certamente porque a localidade é rodeada por vários montes”, procurou esclarecer Damião. 

Atracando no cais de Entremontes. (Foto: Claudemir Mota)
 
Da esquerda para a direita, o novo guia Damião Gonçalves, "Zé de Ourinho" e o "Piaba". (Foto: Claudemir Mota)

            Passamos pela gruta de Angicos, e, antes de chegarmos a Piranhas, aportamos em uma praia na margem sergipana, ao pé do morro do Colete, defronte ao morro dos Macacos, onde montamos acampamento.
 
Começamos a navegar pela noite. A montante, os morros do Colete, em Sergipe e dos Macacos, em Alagoas. (Foto: Claudemir Mota)



           
            Somente na sexta-feira deveríamos atravessar para Piranhas, combinamos, e, depois, para Canindé. Armamos as barracas, instalamos o gerador, colocamos carvão numa churrasqueira e assamos várias postas de salmão, trazidas de Maceió. 
       Os nossos novos amigos, Damião, "Piaba" e "Zé de Ourinho", ficaram proseando um pouco; falaram dos costumes locais, das lendas da região, do “fogo corredor”, da “mãe d'água” e do “nego d'água”; reclamaram da situação do rio, que só vivia seco, e, em seguida, às 19 horas, foram os três para suas casas, com o compromisso do Damião de voltar no dia seguinte, sexta-feira, e nos guiar até Piranhas e Canindé. 
      Passamos a saborear deliciosos sanduíches de salmão. Alguns companheiros de viagem dormiram em barracas, e outros, a bordo da “Catita do Rancho”. A linda noite enluarada e a brisa da madrugada só nos faziam reconhecer que a viagem já tinha valido a pena. Aproveitando, pois, o silêncio da noite, somente atrapalhado pelo canto das cigarras, e pelo som  suave das "maruadas" do rio, passei a refletir sobre a beleza da vida, sobre a viagem, sobre  o Velho Chico com suas histórias, seu folclore e sua cultura. Lembrei-me dos "causos" contados pelo Damião; da "mãe d'água que, "pela meia noite, quando o rio para, começa a vagar pelas margens a procura de gente". Lembrei-me da bela, apaixonada e apaixonante índia "Irati" com seus cabelos negros e com seus olhos de amêndoa...Adormeci.

A "Catita do Rancho" no pé do morro do Colete, em Sergipe. (Foto: Claudemir Mota)

Montando acampamento. (Foto: Claudemir Mota)
 
Preparando o churrasco de peixe. (Foto: Claudemir Mota)

             Amanheceu, iniciava-se uma nova jornada. Aquela paisagem noturna agora dava lugar a um esplendoroso dia de sol. Às 6 horas da manhã, estávamos todos de pé. O rio, repleto de tambaquis, obra do pessoal da Chesf, nos convidava ao banho. Tomamos café e desmontamos toda a estrutura de acampamento. Antes das 7 horas, chegaram o Damião Gonçalves, nosso guia, e seu amigo “Zé Ourinho”. O “Piaba” voltou para Pão de Açúcar. Às 7 horas e 30 minutos, todos a bordo, menos o “Zé de Ourinho”, seguimos para Piranhas. 
Amanhecendo defronte ao morro dos Macacos. (Foto: Claudemir Mota)
 
Pedras surgem a todo instante nesta parte do rio. (Foto: Claudemir Mota)

               À medida que a correnteza do rio aumentava, surgiam cada vez mais pedras no leito do rio: nas margens, no meio, em todos os cantos. Tínhamos que pilotar entre as pedras e contra uma correnteza brutal. A viagem passou a ficar perigosa e tensa, e o Damião dizia: “Vocês ainda não viram nada!” A cada momento que nos aproximávamos de Piranhas, a força das águas aumentava. Somente um motor possante como o nosso seria capaz de vencer a correnteza, empurrando uma lancha de 24 pés com 8 pessoas a bordo e muita bagagem. Uma verdadeira aventura “no limite”. Muita tensão e adrenalina. 
A correnteza do rio é muito forte nas proximidades de Piranhas. (Foto: Claudemir Mota)

            Chegamos, finalmente, em Piranhas. A praia já estava preparada para receber os banhistas, com bombeiros a postos; pouco antes das 9 horas, ancorávamos no porto, bem próximo da canoa de tolda “Piranhas” e da chata “Entre montes”, pertencentes à prefeitura, atrações turísticas do município. Desembarcamos, providenciamos combustível e, em seguida, fomos visitar a encantadora cidade, conhecida como a “Lapinha do Sertão”. 
 
Canoa de Tolda "Piranhas". (foto: Claudemir Mota)


     

As canoas são atração turística. (Foto: Claudemir Mota)

Ao lado da canoa de tolda  "Piranhas", a chata "Entre Montes". (Foto: Claudemir Mota)

         Visitamos o Museu do Cangaço, situado na antiga estação ferroviária, e a igreja de Nossa Senhora da Saúde. Fomos conhecer uma antiga locomotiva em exposição na orla, dantes empregada no trajeto de Piranhas, em Alagoas, a Jatobá, em Pernambuco, e vice-versa.
 
Antiga locomotiva da estrada de ferro Paulo Afonso. (Foto: Claudemir Mota)

 
Trajeto da estrada de ferro Paulo Afonso. (Foto: Claudemir Mota)


 
Igreja de Nossa Senhora da Saúde, Padroeira de Piranhas. (foto: Claudemir Mota)


          Fiquei imaginando a ousadia de se construir uma estrada de ferro naquela época, em um lugar árido e montanhoso como aquele. Foi uma proeza de D. Pedro II. Um dos seus objetivos era facilitar o escoamento da produção rural e unir o baixo ao médio São Francisco (alguma literatura indica a ligação do baixo ao alto São Francisco, o que configura um impossibilidade geofísica, considerando a imensa distância que separa esses dois extremos). A construção da ferrovia Paulo Afonso mobilizou milhares de brasileiros, em sua maioria nordestinos. A ferrovia contava com oito estações, localizadas nos estados de Alagoas, Pernambuco e Bahia, com as seguintes denominações: Estação Piranhas, Estação Olho D’água, Estação Talhado, Estação Pedra/Delmiro, Estação Sinimbu, Estação Moxotó, Estação Quixabá e Estação Jatobá. Infelizmente, a ferrovia, como já disse na primeira parte deste trabalho, foi desativada pelo governo militar em 1964, sob o argumento de ser deficitária. Em seguida, caminhamos um pouco pela cidade, quando resolvemos novamente enfrentar a fúria das águas e ir a Canindé do São Francisco, o último porto do trajeto. 

Visitando o Museu do Cangaço, em Piranhas. (Foto: Claudemir Mota)

            Saímos de Piranhas por volta das 10 horas e 30 minutos, e, aí sim, essa foi a parte mais angustiante da viagem. A força da correnteza era tão grande que pilotar a lancha se tornava uma tarefa hercúlea, obrigando-nos a lances de equilibrismo indescritíveis.
           Chegamos meia hora depois à região externa da hidrelétrica de Xingó e à praia de Canindé, que estava apinhada de gente tomando banho. Ancoramos em um pequeno espaço destinado às embarcações e fomos muito bem recebidos pelos funcionários da prefeitura municipal, encarregados de administrar o ambiente. Lugar de muita beleza, repleto de restaurantes e bares, todos simetricamente distribuídos. Escolhemos um deles e pedimos três pratos: carne do sol, peixe frito e uma peixada ao molho de coco com pirão. 
          Ao meio-dia e meia, embarcamos na “Catita” e, só de pensar na correnteza, já aumentava a adrenalina e, com ela, a expectativa das emoções que estavam por vir. Fiquei curioso, também, para sentir o comportamento da lancha navegando a favor da corrente d'água e contra o vento. O que aconteceu dessa vez assustou a todos: a forte correnteza e as “panelas d'água” parecia trabalharem para nos jogar contra as pedras. Mas, a essa altura, já me sentia um exímio navegador de “corredeiras”. 

Entre Piranhas e Canindé, forte correnteza e muita pedra. (Foto: Claudemir Mota).


 
Hidrelétrica de Xingo, a mais moderna da Chesf, produz 30% da energia da empresa (Foto: Claudemir Mota)

          
A prainha de Canindé do São Francisco, um convite ao lazer. (Foto: Claudemir Mota)



Peixada com pirão, peixe frito, carne do sol. Gastronomia de primeira. (Foto: Claudemir Mota)

        Meia hora depois, já passávamos por Piranhas; minutos após, pelos morros dos Macacos e do Colete e pela praia onde dormimos na noite anterior. Seguimos viagem, sempre sob a orientação do experiente “canoeiro” Damião, pois o perigo estava presente a todo momento, na ameaça que as pedras, como figuras onipresentes, representavam contra o casco da embarcação. Combinamos cumprir o que fora acertado no dia anterior, ou seja, desembarcar por alguns minutos em Entremontes, para conhecer o trabalho das rendeiras e bordadeiras da “Capital do Bordado”. 
Entremontes vendo-se, ao fundo, a igreja Nossa Senhora da Conceição. (Foto: Claudemir Mota)


       Atracamos mais uma vez no cais emadeirado de Entremontes. Damião nos levou a uma espécie de cooperativa de bordadeiras, e passamos a contemplar a arte, definida como "ponto de cruz" e "redendê", que brotava das mãos caprichosas daquelas mulheres sertanejas. 

 
Redendê e ponto de cruz, artesanato da Capital nacional do bordado. (Foto: Claudemir Mota)

      
Dona Francisca, antiga rendeira e bordadeira de Entremontes. (Foto: Claudemir Mota)
Igreja Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Entremontes. (Foto: Claudemir Mota)

       
       Aproveitamos para fotografar o distrito e a elegante igreja de Nossa Senhora da Conceição. Aliás, comecei a pensar, naquela oportunidade, no porquê dos tantos nomes atribuídos a Maria, mãe de Jesus. Conhecida como Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em algumas localidades, em Piranhas ela é Nossa Senhora da Saúde; em outras comunidades, ela é conhecida como Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora Aparecida, e assim vai. Não importa. Os mais variados nomes dados a Maria são fruto do desejo de cada povo do mundo católico de homenagear a Mãe de Jesus e decorre, também, de outros fatores, como a aparição, a dor, a concepção, a necessidade, a aflição etc. Em Traipu, a mãe redentora, amiga, cuidadora, protetora dos necessitados e dos ribeirinhos, leva o nome de Nossa Senhora do Ó que, do alto da colina onde sua imagem está assentada, atende a todos que a ela recorrem e dela precisam. É somente dizer na hora da dificuldade: “Valei-me, Nossa Senhora do Ó!” Com essa fórmula milagrosa, desaparece toda a angústia e some toda a aflição. Seguramente, Nossa Mãe apontará um norte. O alívio virá.
         Despedimo-nos, enfim, das novas e simpáticas amigas e embarcamos, ainda com algum receio, pois passaríamos pelo local onde nossa hélice acertou uma ponta de rocha submersa. 

Preparando para viagem a Pão de Açúcar. (Foto: Claudemir Mota)

             O relógio já marcava 14 horas. Conseguimos atravessar o perigoso trecho sem nenhum problema. Passamos rente à foz do rio Capiá, um dos afluentes temporários do “Velho Chico”, em Alagoas, pelos povoados sergipanos de Cajueiro e Jacaré; resolvemos ancorar em uma praia situada próximo à trilha de acesso à gruta de Angicos, no município de Poço Redondo, em Sergipe. A partir daquele ponto, com uma caminhada de cerca de meia hora, chega-se à gruta em que Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião,  depois de aterrorizar  os habitantes da região, costumava se esconder com seu bando, composto de aproximadamente duas centenas de homens. Virgulino, Maria Bonita e mais 10 “cangaceiros” foram mortos e decapitados no dia 28 de julho de 1938, como efeito da ação de uma volante alagoana comandada pelo Capitão João Bezerra, que, para isso, contou com a ajuda de um coiteiro, que traiu a confiança do “Rei do Cangaço”. 
             Voltamos ao rio e, de novo, embarcamos. Às 15 horas e 30 minutos, demos prosseguimento à viagem. Damião, sempre na proa, dizendo: “Mais pro norte... mais pro sul ... mais pro norte ... mais pro sul ...”, até que anunciou, solenemente: “Agora não tem mais pedra, vocês podem 'acochar' até o fim do rio”: foi um alívio para todos nós. Dez minutos depois, fundeamos o barco próximo a um banco de areia, na margem esquerda, onde o “Zé de Ourinho” já aguardava Damião em uma canoa, para levá-lo de volta a Entremontes. 
            Seguimos viagem agora por nossa conta e risco, como se diz por aqui. O rio, àquela altura, parecia virar mar: ganhava largura e, apesar de mais raso do que o trecho das pedras, dava a impressão de possuir um volume bem maior de água. Como se diz em linguagem geográfica, é o rio em seu estado maduro. 
             Passamos a imprimir uma velocidade bem maior ao barco, planando durante um bom tempo, até que começamos a avistar, ao longe, a imagem do Cristo Redentor de Pão de Açúcar. Aliás, a nossa velocidade média era de 8 ou 9 nós, ou milhas náuticas. Quando o trecho permitia, atingíamos a velocidade de cruzeiro, que vai de 20 a 25 milhas náuticas. 
         Por volta das 5 horas, aportávamos na antiga Jaciobá. Rodrigo ligou para um amigo seu, que nos deu assistência e, logo, abastecemos mais uma vez a lancha; fizemos compras e aproveitamos para tirar algumas fotos da igreja matriz e do Cristo já iluminado, pois começava a anoitecer. 
       O monumento ao Cristo Redentor é belíssimo: medindo 14 metros e 80 centímetros de altura, com o pedestal, ele foi esculpido por João Lisboa, artista local, e inaugurado em janeiro de 1950. Fomos para o porto, situado em uma grande faixa de areia e acertamos fazer a travessia até a margem sergipana, para novamente montar acampamento, evitando, assim, deslocamento noturno, com risco de encalhe em bancos de areia, comuns nos tempos atuais nesse trecho do Opará (expressão indígena do São Francisco). Lembramos de ligar para o “Piaba”, nosso primeiro guia, para nos despedirmos dele. 
 
Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, em Pão de Açúcar. (foto: Claudemir Mota)

     
      Atravessamos o rio e, exatamente em frente a Pão de Açúcar, ancoramos em frente a um pé de morro sobre uma pequena faixa de areia, onde montamos acampamento numa área repleta de caatingas do tipo arbórea densa, e de mandacarus. Percebemos, tão logo ligamos o gerador e acendemos as luzes do acampamento, ser aquela localidade muito utilizada para “camping”, isso porque, na base do morro, existem pedras que mais parecem mesas com bancos, também de pedra, ao redor. Havia, observamos, muito lixo deixado pelos banhistas. 
O Cristo iluminado ao longe. (Foto: Claudemir Mota)

 
Acampamento em frente a Pão de Açúcar. (Foto: Claudemir Mota)


            Acampamento pronto, tomamos café com pão, queijo e bolacha. Pão de Açúcar em frente, noite enluarada e, um pouco mais distante, o Cristo Redentor, sobre o morro do Cavalete, iluminado por focos de luz azul em sua base. Proseamos, e o Claudemir aproveitou para fotografar a paisagem. Fomos todos dormir. Passei a contemplar aquela linda noite estrelada e a escrever tudo que anotara pelo dia. Pela manhã teríamos uma grande jornada rumo à cidade de Gararu e ao povoado de Escurial, em Sergipe, e a Traipu, em Alagoas, de onde partimos. O pernoite no morro em frente a Pão de Açúcar foi mais tranquilo do que o da noite anterior, pois estávamos todos adaptados ao novo e efêmero “estilo” de vida. Amanheceu e logo começamos a fazer tudo do mesmo jeito: tomamos café, desmontamos o acampamento, arrumamos a lancha e lá estávamos todos a bordo e seguindo viagem a jusante, com destino à cidade de Gararu. 

 
Cidade de Gararu, Sergipe. (Foto: Claudemir Mota)

            Largamos às 7 horas e 30 minutos. Passamos de novo, agora no sentido contrário, pelos mesmos povoados, vendo a paisagem por outro ângulo. A beleza do rio é verdadeiramente incrível! Percebi que a medida que descíamos o Velho Chico, o seu leito se alargava, e pude notar que, em muitas passagens, o rio ganhou largura, eis que suas margens, nos baixios, recuaram por causa do desmatamento. De Pão de Açúcar até Gararu, a viagem durou 2 horas e 30 minutos. Às 10 horas, pois, desembarcamos no porto da cidade de Gararu, em Sergipe, onde providenciamos combustível (lanchinha pra beber!) e, em seguida, percorremos toda cidade. Lugar aconchegante, casas coloridas, pouca gente na rua e, como em todas as localidades visitadas no percurso, chamava-nos a atenção a beleza do templo católico. A igreja de Bom Jesus dos Aflitos, inaugurada em 1910, é, de fato, muito bonita. 

Igreja de Bom Jesus dos Aflitos, em Gararu, Sergipe. (Foto: Claudemir Mota)
 
Monumento ao índio Gararu, que teria inspirado o nome da cidade. (Foto: Claudemir Mota)

            Retornando à valente “Catita do Rancho”, onde o José Luiz ficara cuidando dos preparativos para o novo trecho, encontramos uma praça com uma enorme estátua do “índio Gararu”, bravo guerreiro que teria inspirado o nome da cidade. Saímos de Gararu por volta das 11 horas e 30 minutos, com destino ao “Buraco da Maria Pereira”, ainda no mesmo município. Na verdade, a região é formada por uma sequência de rochas e grutas belíssimas, paredões de pedras com mais de 100 metros de altura e vegetação bem variada: caatingueiras das duas espécies, cactos, mameleiros, craibeiras,  e muitas outras espécies nativas. Para chegarmos a essa localidade, deixamos a embarcação fundeada na foz do riacho da Maria Pereira. Esclareço que, no baixo São Francisco, todos os rios e riachos são temporários, e, nessa época de estiagem, seus leitos se encontram secos. O Velho Chico, entretanto, sempre avança 50 a 100 metros calha acima. Caminhamos mata a dentro cerca de 300 metros.
            O silêncio das veredas situadas entre os paredões de pedra chega a assustar. Um carcará voando acima das rochas quebra a monotonia e pia estridentemente em busca de sua presa. Rolinhas "fogo-pagô"  e "caldo de feijão" fazem uma revoada que encanta a todos; morcegos saem aos montes das cavernas, e lagartos se movimentam rapidamente entre os arbustos.
               As noites, às margens do São Francisco, sobretudo nessas regiões rochosas, são de uma beleza inimaginável! Ver o sol esconder-se por trás dos grandes paredões e, logo em seguida, contemplar o céu estrelado ao som produzido pela sinfonia da grande orquestra, composta pelo zumbido das  cigarras, pelo guizalhar dos grilos e pelo coaxar dos sapos, é um espetáculo inesquecível.
 
Ancorando a lancha na foz do riacho Maria Pereira. (Foto:Claudemir Mota)

          
Início da sequencia de rochas em direção ao buraco da Maria Pereira. (Foto: Claudemir Mota)

      
Paredões de pedras altíssimos . (Foto: Claudemir Mota)

 
As pedras parecem não ter fim. (Foto: Claudemir Mota)

 
Mais uma rocha em sequência. (Foto: Claudemir Mota)

 
Rochas de milhões e milhões de anos, esculpidas pela natureza. (Foto: Claudemir Mota)

 
O lugar é de uma grandeza exuberante. (Foto:Claudemir Mota)

 
Aqui teria vivido Maria Pereira. (Foto: Claudemir Mota)

 
A caverna tem andar térreo e andar superior. (Foto: Claudemir Mota)

         Dizem que há mais de 80 anos teria vivido, na maior daquelas cavernas, repletas de morcegos, a figura da Maria Pereira, mulher valente que resolveu morar sozinha e isolada do resto do mundo. Falam, também, que ela era muito temida na região por sua coragem para enfrentar índios e, até mesmo, os “cabras de Lampião”. Quando estávamos todos contemplando a beleza daquele desfiladeiro, e as cavernas entupidas de pequenos morcegos, tendo como trilha o leito seco do riacho, eis que se aproxima um homem, montado em um jegue selado e acompanhado por três cachorros esquálidos. 

João Faustino em seu meio de transporte, o jegue. (Foto: Claudemir Mota)
 
João Faustino expressa a figura do sertanejo sofrido, mas feliz. (Foto: Claudemir Mota)

     
Coronel Pinheiro, mostrando seu lado "Indiana Jones". (Foto: Claudemir Mota)
     O homem parecia um pouco desconfiado da nossa presença. Pessoa, na verdade, muito simpática, com 60 anos de idade, logo fizemos amizade. Tratava-se de João Faustino, proprietário daquelas terras. Conversamos muito, tiramos fotos, ele nos contou suas aventuras e fez questão de que fôssemos todos fotografados, montados em seu pequeno mas forte jegue, símbolo de resistência. João Faustino nos convidou a conhecer uma das maiores cavernas da região, onde, segundo ele, teria acampado, em várias oportunidades, Lampião e seu bando. Faustino afirmou que a caverna tinha sala e corredor, e a caminhada até ela duraria mais ou menos uma hora. O fotógrafo Claudemir se animou com o convite; entretanto, terminamos por rejeitá-lo, pois, além do Cel. Pinheiro ter levado um corte ao pisar em um caramujo, estávamos todos com muita fome. Despedimo-nos daquela simpática e interessante pessoa e retornamos à nossa lancha, onde, como sempre, o José Luiz nos aguardava com tudo pronto para outra jornada. 


Retornando à embarcação. (Foto: Claudemir Mota)

            Todos a bordo, já era mais de meio dia quando nos dirigimos a uma bela praia situada em frente à cidade de Traipu, no sopé da enorme serra da Tabanga, ainda no município de Gararu, no lado sergipano. A serra é uma das referências geográficas para Traipu, em Alagoas. Entre o outono e a primavera as caatingueiras e as mais variadas espécies de cactos apresentam pequenas flores amarelas que tornam o cenário ainda mais bonito. 
             No local, muitas barracas e pequenos restaurantes, com mesas e cadeiras cobertas por grandes toldos e, curiosamente, tudo montado dentro d’água: “Não precisa, sequer, sair para procurar pia, pois ela está embaixo de nós. Para lavar as mãos, basta abaixá-las”, brincava o Claudemir. Almoçamos novamente peixe frito e ensopado, e carne do sol; desfrutamos por 2 horas de grande lazer à beira do maravilhoso rio. Nesses últimos trechos, de Pão de Açúcar em diante, ouvimos boa música, e a viagem foi bastante animada.

A prainha, em frente a Traipu, no pé da serra da Tabanga, em Sergipe. (Foto: Claudemir Mota)
 
Barracas dentro d' água, no pé da serra da Tabanga, em frente a Traipu. (Foto: Claudemir Mota)

              Faltava cumprir a última etapa dessa primeira parte da emocionante aventura de conhecer detalhadamente todo baixo São Francisco: fomos de Traipu, em Alagoas, até Canindé do São Francisco, em Sergipe, último, ou primeiro, ponto navegável do baixo São Francisco. Voltamos e combinamos que a derradeira localidade a ser visitada nessa descida do rio seria o povoado conhecido como Escurial, situado na margem direita do rio e pertencente ao município sergipano de Nossa Senhora de Lourdes. De lá, em razão da escassez do tempo, retornaríamos para Traipu e somente na primeira quinzena de dezembro iríamos descer o rio até sua desembocadura. E assim foi feito.

            Por volta das 15 horas, saímos em direção ao povoado de Escurial. O “Velho Chico”, já bastante cansado, apresentava muitos segmentos extremamente largos e secos. Tínhamos de ficar muito atentos para não encalhar a “Catita do Rancho”. Navegamos quase uma hora e, finalmente, ancoramos no porto da balsa, pois, em razão do assoreamento, não tínhamos como aportar mais perto da bonita vila. Na lancha ficaram o Coronel Pinheiro e o José Luiz. Caminhamos cerca de 2 quilômetros até chegar ao povoado. 
Os expedicionários, "Seu" Evânio, e seus irmãos. (foto: Claudemir Mota)

Exposição de réplicas do "Seu" Evânio. (Foto: Claudemir Mota)


O artesão em sua oficina. (Foto:Claudemir Mota)

            O Rodrigo parecia ser bem popular na comunidade, pois muitos moradores compravam em seu estabelecimento comercial, em Traipu. Claudemir tirava fotos de tudo: de lagoas, riachos e pequenos currais de gado (Escurial é um conhecido entreposto para o comércio de gado com o Estado de Alagoas). O Alex, como de costume, sempre interessado em tudo que via na caminhada. O Rodrigo, então, nos levou ao atelier de um grande artesão sergipano, conhecido no Brasil e no exterior por sua arte de construir e esculpir e réplicas das embarcações típicas do São Francisco: “seu” Evânio Rodrigues Melo que, com mais de oitenta anos de idade, encontra-se em plena atividade. Pessoa muito lúcida e brincalhona, tratou de nos mostrar as dezenas de embarcações por ele feitas, enquanto nos dizia que suas réplicas da canoa de tolda, da chata, das lanchas “tupi”, “tupijí” e “tupã” e das balsas, se acham em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e até na França. Ele nos contou, orgulhoso, que o Bispo de Propriá mandou uma réplica da lendária canoa de tolda para o Papa, em Roma. O mais engraçado dessa visita foi o tom brincalhão do artesão e de seus dois irmãos, todos idosos. Os três gostavam de pilheriar e de pregar peças. Logo na chegada, o “seu” Evânio virou-se para o Rodrigo e disse: “Rodrigo, você pra mim é de ouro, derretendo dá o anel”. Um dos seus irmãos olhou para o Claudemir e falou: “Olha, amigo, gosto muito de tu e tu deu”. Coisas do interior, a espirituosidade do homem simples do campo, do artesão das vilas, do vaqueiro, do agricultor, dos moradores das cidadezinhas e de tantos recantos que fazem a nação franciscana. Despedimo-nos do “seu” Evânio e de sua simpática família de longevos, e, ao retornarmos, visitamos a igreja de São Bento, padroeiro da comunidade. 

Igreja de São Bento, padroeira do distrito de Escurial, município de Nossa Senhora de Lourdes, SE. (Foto: Claudemir Mota)

             Novamente a bordo da guerreira “Catita”, subimos o rio, quando, às 17 horas e 40 minutos, chegamos de volta ao porto da areia, em Traipu. Atrelamos a lancha à nossa camionete 4/4, puxâmo-la para fora d'água e, em seguida, comemoramos o êxito de uma das experiências mais importantes da vida de todos os membros dessa equipe integrada, entusiasmada e comprometida com a sobrevivência do chamado Nilo Brasileiro. Às 19 horas, estávamos todos no sítio “Rancho São Francisco”, onde já nos aguardavam os nossos colaboradores de terra, Eraldo Medeiros e Mazé. Acertamos que retornaríamos a Maceió às 10 horas do domingo, dia 17 de novembro. Com toda certeza, sentiremos saudades do rio, de sua gente simples, das cidades e da “Catita do Rancho", que não nos decepcionou.

Navegando de volta a Traipu. (Foto: Claudemir Mota)

Já avistando Traipu. (Foto: Claudemir Mota)

              Em dezembro, postaremos o texto narrando a aventura dessa mesma equipe indo a bordo da brava "Catita do Rancho" até a foz do "Velho Chico"; e, novamente retornando ao nosso ponto de partida: Traipu. Certamente a paisagem estará modificada, pois, diferentemente da região do alto São Francisco, nas Gerais, que entre outubro e novembro recebe as primeiras águas, que transformam o Parque da Serra da Canastra em um maravilhoso jardim, nossos sertões sofrem com a falta d'água, e o verde dá lugar aos galhos secos das caatingas que, firmes, aguentam, de pé, até a vinda do inverno. Nem por isso, entretanto, o Velho Chico perde a sua beleza, pois, da aridez que lhe toma conta, surgem pedras que antes se escondiam; mandacarus, xique-xiques e outros cactos, que pontilham a paisagem marrom com o verde dos seus caules e o vermelho dos seus frutos.

 
Rebocando a lancha em Traipu. (Foto: Claudemir Mota)



Comemorando o sucesso da expedição. (Foto: Claudemir Mota)